Escalada do Pequeño Alpamayo, Bolívia

O Alpamayo é uma montanha de 5947m de altitude, localizada na Cordillera Blanca, no Peru, e que ficou famosa por já ter sido considerada a mais bonita do mundo por uma revista alemã especializada em alpinismo. Pela semelhança com sua vizinha peruana, uma montanha boliviana localizada na Cordillera Real ficou conhecida como o Pequeño Alpamayo, e apesar de realmente ser um pouco menor, com 5370m, não perde quase em nada quando o quesito é a beleza de suas faces escarpadas e suas cristas afiadas, completamente nevadas. Com o objetivo final de tentar escalar o Illimani, a segunda maior montanha da Bolívia com 6438m, retornei à La Paz no inverno de 2017, procurando seguir os mesmos procedimentos de aclimatação adotados na subida ao Huayna Potosí em 2016. A ascensão ao topo do Pequeño Alpamayo seria uma preparação para encarar o gigante Illimani, podendo ser concluída em dois dias, saindo de La Paz pela manhã e pernoitando no acampamento base do maciço do Condoriri – um conjunto de montanhas que inclui também o Pico Áustria, a Pirâmide Blanca, o Ilusión e o próprio Condoriri, também conhecido como Cabeza del Condor.

Nevado Tarija e o Pequeño Alpamayo

Como ainda sou apenas um iniciante nesse mundo de alta montanha, foi preciso contratar um guia através de uma agência para encarar a escalada com um mínimo de segurança. No dia 31 de julho de 2017, pouco antes das 9h00 da manhã, cheguei ao antigo endereço da agência Hiking Bolivia na calle Sagarnaga, onde hoje funciona apenas um pequeno depósito de equipamentos, para me encontrar com o guia Rodolfo Layme, e pegar os últimos equipos que ainda me faltavam: um piolet de travessia, um par de polainas, capacete e cadeirinha. Saímos de La Paz por volta das 10h00 rumo à Rinconada – um pequeno rancho no final de uma longa estrada empoeirada e que é o ponto mais próximo das montanhas que o velho táxi dirigido por Rodolfo conseguiria alcançar. A viagem que normalmente levaria cerca de 2h, naquele dia por causa de protestos pela escassez de água na cidade de El Alto e bloqueios na estrada em diversos pontos, acabou demorando quase 5h e se tornando um verdadeiro martírio devido ao intenso calor dentro do carro, com todos os vidros fechados e sem ar-condicionado. Já aprendi que se existe algo que tem sempre 100% de chances de acontecer na Bolívia, é você enfrentar um protesto quando precisa se deslocar pelas estradas do país. O que ajudou a aliviar um pouco o sofrimento e passar o tempo foi o bate-papo com um casal brasileiro que contratou apenas o transporte até o acampamento base e que também estavam no carro-microondas: Laura e Pedro, escaladores do Rio de Janeiro com muita história pra contar. Os dois acabavam de passar uma semana completamente isolados em um local próximo ao Salar de Uyuni conhecido como Itália Perdida, uma formação rochosa no meio do nada. Eles me contaram como foi a aventura para conseguirem chegar até lá e a satisfação de conquistarem as primeiras vias da região (pra quem se interessar, eles montaram um guia completo das vias do local disponível aqui). Pedro já havia escalado diversas montanhas na Bolívia e me deu uma boa noção do que poderia esperar para o dia seguinte.

Rancho em Rinconada

Chegando em Rinconada, já por volta das 14h00, Rodolfo e eu almoçamos a comida previamente comprada em El Alto e ele se encarregou de contratar uma mula para levar os equipamentos até o acampamento base, à cerca de 2h dali. Essa caminhada de aproximação é bem tranquila e a vista das montanhas ao redor impressiona bastante. Chegando nos primeiros refúgios, próximos à laguna Chiarkota, uma má notícia: todos os locais estavam lotados de trekkers e não havia lugar para Rodolfo e eu dormimos naquela noite. Rodolfo comentou que talvez tivéssemos que bivakar (o que significa dormir praticamente ao relento), caso não encontrássemos vagas em um outro local, um pouco mais acima da laguna. Nesse outro refúgio, após conversar com o proprietário, felizmente conseguimos dois lugares para dormir, sendo que uma das vagas era na cozinha. Fui me deitar por volta das 20h00 e o plano era acordar à 01h00 para tomar um rápido café da manhã e começar a caminhada até a base do glaciar do Nevado Tarija, uma montanha vizinha de aproximadamente 5300m e que necessariamente precisa ser escalada primeiro, antes de se tentar chegar ao cume do Pequeño Alpamayo, de forma que seriam duas escaladas em uma.

Cardápio do almoço – arroz, frango e banana

Laura e Pedro à caminho do acampamento base do Condoriri

Rodolfo na caminhada de aproximação

Laguna Chiarkota com o Nevado Tarija ao fundo

Refúgio na base das montanhas

Suíte presidencial no refúgio

Por volta das 2h da madrugada do dia 01 de agosto, saímos do refúgio e iniciamos nossa caminhada pelo terreno rochoso que conduz até o início do glaciar. O tempo estava muito bom, sem nenhuma nuvem e com o céu bastante estrelado. A temperatura por volta dos -5ºC, não chegava a trazer uma sensação muito grande de frio, graças à ausência total do vento. Cerca de 1h depois, chegamos à base do glaciar e paramos para nos equiparmos com os crampons e nos encordarmos. Agora a subida ficava muito mais íngreme e o trajeto seguia um zigue-zague pela esquerda da rampa de gelo para depois seguir pela direita em linha diagonal quase direta rumo ao cume do Tarija. Às 06h30 da manhã alcançamos o topo, minutos antes do sol nascer.

Colocando os crampons para começar a subida do glaciar

Primeira visão completa do Pequeño Alpamayo do cume do Tarija

Rodolfo se preparando para desescalar as rochas do Tarija

Do cume do Tarija, é preciso desescalar um trecho de rochas de uns 70 metros, atravessar um colo entre as duas montanhas com algumas gretas fáceis de identificar e voltar a subir, agora pela rampa do Pequeño Alpamayo – uma pendente com forte inclinação desde o começo e que chega próximo aos 55º em alguns trechos. Rodolfo seguia na frente ditando o ritmo (-Más despacio, Rodolfo!) e eu tentava acompanhar alguns metros atrás. Esse tipo de progressão é conhecido por alguns como “à francesa” (há controvérsias!), quando o guia e o segundo sobem simultaneamente, sem proteções fixas entre os dois e sem reuniões. Um ótimo beta pra este tipo de escalada é: não caia! Principalmente se estiver guiando, já que o tranco pro segundo vai ser ainda mais difícil de segurar a queda. Felizmente o gelo da parede estava em boas condições e fincando as pontas dos crampons com um pouco de força, tinha-se uma boa sensação de segurança. O piolet de travessia, apesar de grande e desajeitado, também auxiliava na hora de buscar algum apoio para as mãos. Em 45 minutos desde o colo, chegamos no topo do Pequeño Alpamayo.

Nem tão “pequeño” assim

No cume do Pequeño Alpamayo

Bastante cansado por causa do esforço e da altitude, me sentei para descansar na pequena área do cume e contemplar a vista da Cordillera Real. À minha direita, o Huayna Potosí parecia ao alcance das mãos. Rodolfo saca algumas fotos minhas no estilo “Tenzing Norgay” no topo do Everest empunhando o piolet e em seguida abre a mochila e tira uma pequena garrafa de algo que ele chama de tequila lá de dentro. Sussurra algumas palavras como uma prece de agradecimento e derrama alguns goles na neve antes de beber. Para Pachamama, ele me explica. Salud! Também tomo um pouco da bebida e em seguida, começamos a nos preparar para o caminho de volta.

Selfie com meu amigo Huayna Potosí

Tequila para Pachamama

Primeiro era preciso desescalar, agora a rampa de gelo do Pequeño Alpamayo, atravessar o colo estreito entre as duas montanhas e retornar pelo trecho de pedras do Tarija. Cruzamos pela primeira vez desde que saímos do refúgio com outros escaladores, seguindo em grupo, logo depois de descerem pela escarpa rochosa. Hola, buenos días! Cumprimento e fico feliz de já estar no caminho contrário, descendo para uma altitude mais baixa em busca de um pouco mais de oxigênio.

Grupo no final da descida do Tarija, rumo ao Pequeño Alpamayo

A desgastante subida de volta ao cume do Tarija e mais gente chegando

Outro grupo no topo do Tarija e nós já começando a descida ao acampamento base

Me sentia bastante cansado e escalar de volta ao cume do Tarija foi um esforço muito grande. Novamente no topo, agora o caminho era só descida. Em 2h percorremos o trajeto que na ida havia levado 4h30 e às 11h00 da manhã já estávamos de volta ao refúgio. Me sentia completamente esgotado e meus músculos pareciam sofrer pequenos choques quando eu tentava esticar os braços ou as pernas. As solas dos pés estavam muito doloridas por causa da bota rígida e foi inesquecível o alívio que senti ao voltar a caminhar sem elas.

Rodolfo na descida do Tarija

Fim do glaciar – pausa para descansar e tirar os crampons

Um ano antes havia escalado o Huayna Potosí, cujo cume passa dos 6 mil metros e não me lembrava de ter sofrido tanto assim. E afinal, com o Pequeño Alpamayo sendo 700 metros mais baixo, fazia todo sentido que fosse um pouco mais fácil e menos desgastante. Mas não foi. E se fizeram valer três regras do montanhismo que nunca falham: é sempre mais longe do que parece, é sempre mais alto do que parece e é sempre mais difícil do que parece. Lembrei-me do Pedro dizendo que um dos pré-requisitos para quem quer subir montanhas é ter uma memória curta. Noites mal dormidas, madrugadas geladas, falta de apetite, calor de derreter quando se está caminhando, a mão que congela quando é preciso parar e retirar as luvas por poucos instantes, a bota que tritura cada ossinho dos pés, o esforço físico extenuante e principalmente a danada da altitude e sua miserável concentração de oxigênio. Você ainda se lembra do gigante Illimani do começo da história? Ficou pra quando todo o sofrimento já não estivesse mais na memória! Naquele momento, a hora era de voltar pra casa.

“A vida é reduzida ao básico: se você está aquecido, confortável, saudável, sem sede ou sem fome, então você não está em uma montanha. Escalar em altitude é como bater sua cabeça contra uma parede de tijolos – é ótimo quando você pára “. – Chris Darwin

Hvannadalshnúkur – No topo da Islândia

Assim que combinei com mais dois amigos que faríamos uma viagem pela Islândia, a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi procurar uma montanha para subir. “Iceland highest peak” no Google e lá veio o palavrão: “Hvannadalshnúkur” (pronuncia-se “kwana-talsh-nukyr”), um pico piramidal na borda noroeste da cratera do vulcão Öræfajökull e que é o ponto mais alto da Islândia.” – segundo o Wikipedia. Na mesma pesquisa já veio também como chegar até lá: Icelandic Mountain Guides – a melhor agência de guias de montanha da Islândia, e acho que também a única que existe na ilha.

Hvannadalshnúkur ao fundo, visto do glaciar Vatnajökull

O topo do “Hvannadalsh” está a 2110m de altitude, o que não chega a ser grande coisa. A Pedra da Mina por exemplo, ponto mais alto do Estado de São Paulo, possui 2798m. O grande problema na montanha islandesa é que sua base está quase ao nível do mar e por isso são mais de 2km de elevação em uma trilha de 22km – ida e volta – percorridos entre 10 e 15h em média.

Nosso guias, Martin e Bia, passando instruções sobre os crampons

Na véspera da subida ocorre uma reunião com os guias e demais participantes do “passeio”, na sede da agência, próxima ao centro de visitantes do Parque Nacional Skaftafell. Nessa reunião, todos se apresentam e os guias nos perguntam se já temos algum tipo de experiência prévia em travessia de glaciares, uso de crampons e piolet e se estamos acostumados com caminhadas por longas distâncias e com grande esforço físico. Também nos alertam que os primeiros 600m de subida servirão como um teste de aptidão e que os que não se sentirem bem para continuar, deverão retornar neste ponto. Se você passar deste local e depois desistir de continuar, irá prejudicar todos que estiverem na mesma cordada que você, já que o guia terá que retornar junto e todos os demais também. Por isso, eles enfatizam que todos sejam bem conscientes no momento de tomar a decisão de continuar ou retornar. Ao todo, éramos em doze pessoas, sendo 10 clientes – duas islandesas, quatro norte-americanos, três canadenses e eu, pontepretano – e 2 guias – Martin, alemão de Stuttgart, e sua esposa Bia, brasileira de São Paulo. Quem diria! Encontrar uma guia de montanhas brasileira tão longe de casa! Pedi à Bia que se possível eu ficasse na mesma cordada que ela, já que meu inglês não é lá essa fluência toda.

Hotel da véspera

Reunião encerrada, fui organizar os equipamentos e tentar descansar um pouco. O plano era dormir no carro e acordar às 2h da manhã para trocar de roupa, comer alguma coisa e encontrar os guias e os demais às 3h. Péssimo plano, já que foi quase impossível pegar no sono devido ao frio e à ansiedade. Se eu fechar as janelas do carro, será que não vou sufocar aqui dentro? Será que a bota alugada não vai me machucar? Por que não trouxe a minha própria bota? Será que teremos muito vento? Minhas roupas vão dar conta se tiver muita neve? Fui o primeiro a chegar no ponto de encontro, e logo depois, chegaram Bia e Martin com a van que nos levaria até a base da montanha, à uns 15 minutos dali.

Primeiro trecho de subida

Os tais primeiros 600m de elevação realmente te fazem repensar se deve continuar ou não, e um casal de norte-americanos achou melhor desistir e retornar a partir dali. Para alguns uma decisão dessas pode ser vista como um fracasso, mas sem dúvida, reconhecer as próprias limitações e evitar prejudicar o resto do grupo com uma desistência posterior foi uma grande demonstração de humildade.

Parada para colocar os crampons

Por volta dos 1000m de elevação, o trecho de rochas expostas fica para trás e surge um enorme campo de gelo que parece infinito. Trata-se de uma borda do glaciar Vatnajökull, a segunda maior calota de gelo da Europa e que cobre 8% do território da Islândia. A espessura de sua camada de gelo pode atingir até 1km. Nesse momento, fizemos uma parada para colocar os crampons e nos encordarmos. Nota do autor: fui o primeiro a terminar de colocar os crampons e ganhei até um elogio do guia alemão: “Super! Not bad for a brazilian!”. Não sei se disse isso pra me incentivar ou para tirar onda com a esposa brasileira!

O Sol indica onde fica o céu

Por diversas vezes durante a subida precisamos interromper o passo para colocar ou retirar camadas de roupas para tentar regular a temperatura. O tempo estava bem frio e bem fechado, com pequenos chuviscos de neve e um pouco de vento. Porém, quando o Sol mostrava um pouco sua força e estávamos nos movimentando, o calor era muito grande e nessas condições a tendência é que as roupas fiquem rapidamente molhadas de suor. Quando isso acontece é terrível, pois minutos depois, o frio volta ainda mais forte.

No topo da Islândia

Depois de 7h de caminhada chegamos ao topo. A visibilidade estava bem limitada por causa de um “whiteout” que nos acompanhou quase o tempo todo. Ficamos por volta de uns 40 minutos no cume descansando, comendo lanches e tirando fotos. Metade do caminho percorrido, era hora de começar a descida. O cansaço já era grande e a neve, por causa do horário e do tempo mais quente, ficou muito fofa no caminho de volta. Por vezes, a cada passo dado a perna afundava na neve até os joelhos.

Pesadelo branco

Depois de umas 3h cruzando o glaciar, quando eu já tinha certeza que estava preso em um pesadelo branco sem fim, chegamos novamente na parte de rochas e pudemos retirar os crampons das botas. Logo depois, uma das canadenses do meu grupo, torceu o joelho ao escorregar em uma pedra e tivemos que parar por uns 10 minutos até que ela se sentisse em condições de continuar. Com ela seguindo na frente do grupo, lentamente seguimos descendo, já sem a necessidade da utilização de cordas ou capacetes.

Descendo sobre rochas

No final, depois de 5h de descida, veio o alívio de enxergar novamente a estrada que nos levaria de volta até o Parque Skaftafell. Só nesse momento que me dei conta de que havia ingerido todos os 3 litros de água que levei e nem sequer uma única vez parei para fazer xixi, tamanho o esforço físico que foi necessário. Chegando ao Parque, me despedi do resto do grupo e corri pra comprar uma ficha que me daria direito à um merecido banho com água quentinha nos chuveiros do camping, roupas secas e um calçado confortável logo depois. O corpo destruído de cansaço mas com um sentimento de grande satisfação por ter conseguido ir até o fim. Não se trata de uma montanha técnica, que exija grandes conhecimentos de escalada. O básico você aprende na hora mesmo, como por exemplo, manter a corda sempre do lado mais exposto da enconsta e retirar a neve acumulada nos crampons sem precisar parar o tempo todo. Além disso, depois de um tempo você pega o jeito do tal “keep the rope smiling” de forma que o trecho de corda entre você e quem vai à frente forme um arco, sem que fique esticada demais ou frouxa demais caída no chão.

Até a próxima e boas escaladas!

Olhando essa foto percebi a quantidade de sais eliminados e acumulados no rosto por causa da transpiração

Escalada do Huayna Potosí, Bolívia

“Os dias que estes homens passam nas montanhas são os dias em que realmente vivem. Quando a mente se limpa das teias de aranha e o sangue corre com força pelas veias. Quando os cinco sentidos recobram a vitalidade e o homem completo se torna mais sensível, e então já pode ouvir as vozes da natureza, e ver as belezas que só estão ao alcance dos mais ousados.” – Reinhold Messner.

O autor dessa frase é considerado por muitos o maior alpinista de todos os tempos, tendo sido o primeiro escalador a atingir o cume de todas as 14 montanhas acima de 8 mil metros sem oxigênio complementar, alguma delas em solitário. Muito, mas muito longe disso, meu objetivo era bem mais humilde: tentar chegar ao cume do Huayna Potosí, montanha de 6088m de altitude, à cerca de 2h de La Paz, Bolívia. Mesmo modesto diante de tantas outras montanhas mais técnicas e muito mais difíceis, os efeitos da altitude em um 6 mil não poderiam jamais serem deixados de lado.  Depois de muita pesquisa sobre o assunto, quando se fala em escalada de alta montanha, ficou claro que o segredo para sair bem sucedido se apoiaria no tripé – hidratação, descanso e aclimatação.

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Altiplano boliviano com o Huayna Potosí ao fundo

O altiplano boliviano, onde fica a base da montanha e também o principal aeroporto para se chegar a La Paz, está situado à aproximadamente 4 mil metros. Quando você desce do avião em El Alto, uma das cidades com maior altitude do mundo, o efeito da baixa pressão atmosférica no seu corpo é instantâneo: dores de cabeça, cansaço, sonolência, taquicardia e respiração acelerada. Aliada à tudo isso, a pouca umidade relativa do ar ajuda a tornar cada inspiração um pequeno sacrifício. Em um ambiente como estes com ar rarefeito, ao detectar a baixa presença de oxigênio na atmosfera, o corpo começa a produzir mais glóbulos vermelhos. O aumento na presença destes, junto com a desidratação devida ao ar extremamente seco, faz com que o sangue fique mais espesso, o que pode trazer problemas à tecidos pulmonares e cerebrais.

A oxi-hemoglobina presente nas hemácias é capaz de carregar 98-99% de todo oxigênio presente no sangue e pode ser visualizada através da saturação de oxigênio, medida pelo oxímetro de pulso. Em outras palavras, esse aparelho verifica indiretamente a quantidade de oxigênio no sangue e permite ter uma noção do quanto seu corpo está sofrendo com essas condições adversas, servindo também para monitorar a evolução no processo de aclimatação. Leituras normais para indivíduos saudáveis ficam entre 97% e 100% quando medidas ao nível do mar. No dia seguinte após chegar em La Paz, eu apresentava uma taxa de apenas 89%. Se não fosse devido à altitude, seria um caso passível de internação, UTI e intubação traqueal!

oximetro

Oxímetro utilizado para medir a saturação de O2 no sangue

A estratégia seria descansar bastante, caminhar lentamente pelas ruas de La Paz e tomar pelo menos 4 litros de líquidos diariamente, principalmente nos dois primeiros dias após a chegada. Felizmente existem diversos “baños publicos” pelas ruas da cidade que cobram apenas 1 boliviano para serem utilizados. Bebendo tanto líquido, não conseguia ficar mais do que 30 minutos sem fazer xixi. Acho que conheci todos os baños da capital pacenã!

Las calles de La Paz

Las calles de La Paz

Além disso, era preciso um plano para tornar a aclimatação mais efetiva. Para isso, um processo já consagrado consiste em subir alto e dormir baixo, ou seja, atingir altitudes mais altas durante o dia e descer para dormir em um local com altitude menor. Assim, como preparação para o Huayna Potosí, me programei para subir duas outras montanhas, o Chacaltaya, com 5421m e o Nevado Charquini, com 5390m. Nos dois casos, retornaria à La Paz no final do dia para dormir nos seus “confortáveis” e bem oxigenados 3600m. Também resolvi que seria melhor incluir pelo menos um dia de descanso entre uma ascensão e outra.

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Turistas à caminho do cume do Chacaltaya

O Chacaltaya é uma antiga estação de esqui, a mais alta do mundo durante seu funcionamento, mas que hoje está desativada devido à baixa quantidade de neve no local, situação considerada por muitos como uma evidência do aquecimento do planeta. A montanha fica bem próxima ao Huayna Potosí e o acesso é feito por uma estrada estreita e bastante íngreme, mas que permite que se chegue até bem próximo ao cume, sendo preciso continuar caminhando por cerca de apenas mais 200m para se atingir o topo. Sem dúvidas é um dos pontos mais altos que se consegue atingir sem praticamente qualquer esforço e, por isso mesmo, uma atração turística muito conhecida em La Paz. Desde que você já tenha aclimatado em La Paz por uns dois dias, deverá sentir apenas um pouco de cansaço e talvez uma leve dor de cabeça devido à altitude, o famoso soroche.

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Eliseu, guia boliviano, à caminho do Charquini

O Nevado Charquini, mais um 5 mil, também fica próximo ao Huayna Potosí e o acesso se dá praticamente pela mesma estrada, fazendo um pequeno desvio à esquerda para se contornar o Chacaltaya e chegar até os refúgios construídos na base do Huayna. Dali, percorre-se uma trilha que segue ao lado de uma canaleta construída para trazer a água resultante do degelo do glaciar até uma pequena represa próxima. Neste dia, enfrentamos um grande congestionamento no trânsito sempre caótico entre La Paz e El Alto, e acabamos chegando na base da montanha um pouco tarde. Devido ao horário adiantado, decidimos não tentar chegar até o cume, pois sobraria muito pouco tempo para retornar até o refúgio ainda com a luz do dia. Caminhamos por cerca de 2 horas até a base do Charquini e levamos mais 1h30 para subir até metade do glaciar, onde foi possível treinar o uso de crampons e do piolet, ferramentas indispensáveis para a escalada do Huayna Potosí dali há alguns dias.

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No glaciar do Charquini, praticando o uso dos equipos de gelo

Não era minha primeira vez utilizando crampons para caminhar no gelo (uma peça formada por um conjunto de pontas destinados a serem presos à sola da bota do alpinista ou do escalador para permitir a sua progressão). Já havia feito isso em um trekking no glaciar Perito Moreno, na Patagônia Argentina. Não tem muito segredo depois que você pega o jeito, mas é um detalhe a mais a ser aprendido no caso de escaladas em montanhas nevadas. É preciso caminhar com as pernas ligeiramente afastadas para evitar que as pontas dos crampons enrosquem nas botas ou na própria calça e tomar cuidado para não “virar o pé” e torcer o tornozelo no caso de superfícies muito íngremes.

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“Acampamento” alto do Huayna Potosí

Depois de cumprir o processo de aclimatação como planejado e de praticamente não sentir mais dores de cabeça e nem cansaço excessivo devido à altitude, estava chegando o momento de encarar a escalada. Na véspera, saímos de La Paz por volta das 9h30 da manhã, fizemos uma parada rápida para comprar o almoço em El Alto e por volta das 12h chegamos ao acampamento base do Huayna Potosí. Comemos rapidamente e logo em seguida já começamos a nos preparar para iniciar a subida até o acampamento alto. Foram 2h30 de caminhada morro acima, saindo de 4700m e chegando até os 5130m onde passaríamos a noite. Andrés, que seria o guia da minha cordada logo mais, preparou o jantar para o grupo e às 18h eu já estava deitado em uma tentativa ingrata de tentar dormir o máximo que fosse possível.

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Hora do jantar no acampamento alto

A altitude e a ansiedade tornavam muito difícil qualquer chance de um cochilo. O acampamento alto é como se fosse uma cabana compartilhada entre diversas agências e guias particulares. Às 23h30, as luzes foram acesas e todos começaram a se preparar para a subida. Uma calça térmica e outra impermeável por cima, uma segunda pele, um fleece, um blusa impermeável com capuz, polainas, botas rígidas, luvas para neve, lenço para proteger o pescoço e nariz, cadeirinha de escalada, capacete, lanterna de cabeça e uma mochila com água e chocolate. Faltava alguma coisa? Tomei uns goles de chá de coca para tentar me aquecer melhor e à 1h30 da manhã deixamos o conforto do refúgio para encarar -8ºC de temperatura e um vento malandro que insistia em tornar tudo ainda mais gelado e sofrido.

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Um breve momento de descanso durante a subida

O primeiro trecho é de uma escalaminhada sobre rochas que estavam cobertas com uma fina camada de gelo, o que tornava indispensável o uso de cordas fixas para evitar o risco de quedas. Após uns 30 minutos chegamos à um ponto a partir do qual o uso de crampons seria necessário. Devidamente calçados e encordados, começamos a lenta e constante subida até o cume. A estratégia era subir devagar mas sem fazer paradas muito longas para descanso. O frio é muito intenso e você começa a congelar quando diminui a circulação de sangue pelo organismo. Andrés seguia na frente guiando e eu buscava acompanhar na medida do possível. Em alguns momentos, não tinha jeito: “- Andrés, un momento, por favor. Estoy muy cansado”. Ele se virava pra checar meu estado e pacientemente aguardava que eu recuperasse um pouco de forças. Depois de um trecho muito inclinado de uns 50 metros, em que é preciso utilizar o piolet para conseguir subir, eu achei que não conseguiria mais continuar.  Pedi para pararmos por um instante, mas estávamos em um local muito exposto ao vento forte e tive que continuar em frente quase me arrastando.  Em nenhum momento pensei em desistir, só tinha receio de simplesmente apagar com o cansaço e o esforço físico bem acima do que estava acostumado a enfrentar por aqui nas montanhas da nossa “Cordillera de la Mantiqueira”. Resolvi tentar me concentrar apenas na minha própria respiração e continuar subindo, um passo de cada vez. Puxava o ar congelante o mais fundo que podia. As botas rígidas próprias para gelo e neve já estavam cobrando o preço da regra mais simples do trekking: nunca utilize uma bota pela primeira vez em uma longa caminhada sem antes se acostumar com elas. Duas bolhas se formavam pouco acima dos meus calcanhares.

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Escaladores no cume do Huayna Potosí

Passo a passo, continuamos em frente e depois de atravessarmos um trecho de rochas bastante exposto, Andrés me cumprimentou e avisou que havíamos chegado ao cume. Talvez se ele não dissesse nada, eu teria continuado subindo até não sei onde. Me sentia meio desorientado, efeito da altitude e do ar rarefeito aliados ao esforço físico extenuante. Me encostei em uma crista que existe próxima ao cume e pude finalmente descansar um pouco.

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Eu e Andrés, o guia da cordada, próximos ao cume do Huayna Potosí

Éramos a segunda dupla daquele dia a chegar ao topo. Lá de cima podíamos ver dois grupos que retornavam antes do trecho de rocha. Haviam desistido. Logo outros escaladores chegaram e tiravam fotos para registrar aquele momento de conquista e superação individual. Eu dizia baixinho pra mim mesmo “Nossa, tenho que tirar umas fotos também”, mas não me mexia pra  retirar a mochila das costas e nem pra pegar a câmera ali guardada. Só queria ficar ali quietinho descansando. Andrés me avisou que logo deveríamos começar a descida, e finalmente me animei e registrei algumas imagens dos outros escaladores e do sol que mal acabava de nascer.

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Travessia do trecho de rochas na hora da descida

Descansamos mais um pouco, e iniciamos o caminho de volta. Foram 5h de subida e cerca de 3h para retornar ao acampamento alto. Ao contrário da escalada até o cume, a descida é marcada por muito calor. O sol refletido na neve e no gelo torna a superfície da montanha um verdadeiro microondas a céu aberto. Ao retirar os crampons no final da descida, me peguei pensando se tudo aquilo havia valido à pena. Afinal, era muito esforço para poucos minutos no topo da montanha. No dia seguinte, já em La Paz, ao rever as imagens e os horários das fotos que tinham sido tiradas no cume, percebi que entre a primeira e a última foto haviam se passado 47 minutos. Permanecemos lá no alto por mais de uma hora e eu simplesmente não me lembrava. Mas sim, com absoluta certeza tudo isso valeu muito a pena e tomara que tenha sido somente o primeiro 6 mil que me permitiu chegar até seu topo!

“O que leva alguém a escalar montanhas é algo que a maioria dos que não fazem parte do mundo dos montanhistas tem muita dificuldade para entender, se é que entende.” – Jon Krakauer no livro Sobre Homens e Montanhas.