O Alpamayo é uma montanha de 5947m de altitude, localizada na Cordillera Blanca, no Peru, e que ficou famosa por já ter sido considerada a mais bonita do mundo por uma revista alemã especializada em alpinismo. Pela semelhança com sua vizinha peruana, uma montanha boliviana localizada na Cordillera Real ficou conhecida como o Pequeño Alpamayo, e apesar de realmente ser um pouco menor, com 5370m, não perde quase em nada quando o quesito é a beleza de suas faces escarpadas e suas cristas afiadas, completamente nevadas. Com o objetivo final de tentar escalar o Illimani, a segunda maior montanha da Bolívia com 6438m, retornei à La Paz no inverno de 2017, procurando seguir os mesmos procedimentos de aclimatação adotados na subida ao Huayna Potosí em 2016. A ascensão ao topo do Pequeño Alpamayo seria uma preparação para encarar o gigante Illimani, podendo ser concluída em dois dias, saindo de La Paz pela manhã e pernoitando no acampamento base do maciço do Condoriri – um conjunto de montanhas que inclui também o Pico Áustria, a Pirâmide Blanca, o Ilusión e o próprio Condoriri, também conhecido como Cabeza del Condor.

Nevado Tarija e o Pequeño Alpamayo
Como ainda sou apenas um iniciante nesse mundo de alta montanha, foi preciso contratar um guia através de uma agência para encarar a escalada com um mínimo de segurança. No dia 31 de julho de 2017, pouco antes das 9h00 da manhã, cheguei ao antigo endereço da agência Hiking Bolivia na calle Sagarnaga, onde hoje funciona apenas um pequeno depósito de equipamentos, para me encontrar com o guia Rodolfo Layme, e pegar os últimos equipos que ainda me faltavam: um piolet de travessia, um par de polainas, capacete e cadeirinha. Saímos de La Paz por volta das 10h00 rumo à Rinconada – um pequeno rancho no final de uma longa estrada empoeirada e que é o ponto mais próximo das montanhas que o velho táxi dirigido por Rodolfo conseguiria alcançar. A viagem que normalmente levaria cerca de 2h, naquele dia por causa de protestos pela escassez de água na cidade de El Alto e bloqueios na estrada em diversos pontos, acabou demorando quase 5h e se tornando um verdadeiro martírio devido ao intenso calor dentro do carro, com todos os vidros fechados e sem ar-condicionado. Já aprendi que se existe algo que tem sempre 100% de chances de acontecer na Bolívia, é você enfrentar um protesto quando precisa se deslocar pelas estradas do país. O que ajudou a aliviar um pouco o sofrimento e passar o tempo foi o bate-papo com um casal brasileiro que contratou apenas o transporte até o acampamento base e que também estavam no carro-microondas: Laura e Pedro, escaladores do Rio de Janeiro com muita história pra contar. Os dois acabavam de passar uma semana completamente isolados em um local próximo ao Salar de Uyuni conhecido como Itália Perdida, uma formação rochosa no meio do nada. Eles me contaram como foi a aventura para conseguirem chegar até lá e a satisfação de conquistarem as primeiras vias da região (pra quem se interessar, eles montaram um guia completo das vias do local disponível aqui). Pedro já havia escalado diversas montanhas na Bolívia e me deu uma boa noção do que poderia esperar para o dia seguinte.

Rancho em Rinconada
Chegando em Rinconada, já por volta das 14h00, Rodolfo e eu almoçamos a comida previamente comprada em El Alto e ele se encarregou de contratar uma mula para levar os equipamentos até o acampamento base, à cerca de 2h dali. Essa caminhada de aproximação é bem tranquila e a vista das montanhas ao redor impressiona bastante. Chegando nos primeiros refúgios, próximos à laguna Chiarkota, uma má notícia: todos os locais estavam lotados de trekkers e não havia lugar para Rodolfo e eu dormimos naquela noite. Rodolfo comentou que talvez tivéssemos que bivakar (o que significa dormir praticamente ao relento), caso não encontrássemos vagas em um outro local, um pouco mais acima da laguna. Nesse outro refúgio, após conversar com o proprietário, felizmente conseguimos dois lugares para dormir, sendo que uma das vagas era na cozinha. Fui me deitar por volta das 20h00 e o plano era acordar à 01h00 para tomar um rápido café da manhã e começar a caminhada até a base do glaciar do Nevado Tarija, uma montanha vizinha de aproximadamente 5300m e que necessariamente precisa ser escalada primeiro, antes de se tentar chegar ao cume do Pequeño Alpamayo, de forma que seriam duas escaladas em uma.

Cardápio do almoço – arroz, frango e banana

Laura e Pedro à caminho do acampamento base do Condoriri

Rodolfo na caminhada de aproximação

Laguna Chiarkota com o Nevado Tarija ao fundo

Refúgio na base das montanhas

Suíte presidencial no refúgio
Por volta das 2h da madrugada do dia 01 de agosto, saímos do refúgio e iniciamos nossa caminhada pelo terreno rochoso que conduz até o início do glaciar. O tempo estava muito bom, sem nenhuma nuvem e com o céu bastante estrelado. A temperatura por volta dos -5ºC, não chegava a trazer uma sensação muito grande de frio, graças à ausência total do vento. Cerca de 1h depois, chegamos à base do glaciar e paramos para nos equiparmos com os crampons e nos encordarmos. Agora a subida ficava muito mais íngreme e o trajeto seguia um zigue-zague pela esquerda da rampa de gelo para depois seguir pela direita em linha diagonal quase direta rumo ao cume do Tarija. Às 06h30 da manhã alcançamos o topo, minutos antes do sol nascer.

Colocando os crampons para começar a subida do glaciar

Primeira visão completa do Pequeño Alpamayo do cume do Tarija

Rodolfo se preparando para desescalar as rochas do Tarija
Do cume do Tarija, é preciso desescalar um trecho de rochas de uns 70 metros, atravessar um colo entre as duas montanhas com algumas gretas fáceis de identificar e voltar a subir, agora pela rampa do Pequeño Alpamayo – uma pendente com forte inclinação desde o começo e que chega próximo aos 55º em alguns trechos. Rodolfo seguia na frente ditando o ritmo (-Más despacio, Rodolfo!) e eu tentava acompanhar alguns metros atrás. Esse tipo de progressão é conhecido por alguns como “à francesa” (há controvérsias!), quando o guia e o segundo sobem simultaneamente, sem proteções fixas entre os dois e sem reuniões. Um ótimo beta pra este tipo de escalada é: não caia! Principalmente se estiver guiando, já que o tranco pro segundo vai ser ainda mais difícil de segurar a queda. Felizmente o gelo da parede estava em boas condições e fincando as pontas dos crampons com um pouco de força, tinha-se uma boa sensação de segurança. O piolet de travessia, apesar de grande e desajeitado, também auxiliava na hora de buscar algum apoio para as mãos. Em 45 minutos desde o colo, chegamos no topo do Pequeño Alpamayo.

Nem tão “pequeño” assim

No cume do Pequeño Alpamayo
Bastante cansado por causa do esforço e da altitude, me sentei para descansar na pequena área do cume e contemplar a vista da Cordillera Real. À minha direita, o Huayna Potosí parecia ao alcance das mãos. Rodolfo saca algumas fotos minhas no estilo “Tenzing Norgay” no topo do Everest empunhando o piolet e em seguida abre a mochila e tira uma pequena garrafa de algo que ele chama de tequila lá de dentro. Sussurra algumas palavras como uma prece de agradecimento e derrama alguns goles na neve antes de beber. Para Pachamama, ele me explica. Salud! Também tomo um pouco da bebida e em seguida, começamos a nos preparar para o caminho de volta.

Selfie com meu amigo Huayna Potosí

Tequila para Pachamama
Primeiro era preciso desescalar, agora a rampa de gelo do Pequeño Alpamayo, atravessar o colo estreito entre as duas montanhas e retornar pelo trecho de pedras do Tarija. Cruzamos pela primeira vez desde que saímos do refúgio com outros escaladores, seguindo em grupo, logo depois de descerem pela escarpa rochosa. Hola, buenos días! Cumprimento e fico feliz de já estar no caminho contrário, descendo para uma altitude mais baixa em busca de um pouco mais de oxigênio.

Grupo no final da descida do Tarija, rumo ao Pequeño Alpamayo

A desgastante subida de volta ao cume do Tarija e mais gente chegando

Outro grupo no topo do Tarija e nós já começando a descida ao acampamento base
Me sentia bastante cansado e escalar de volta ao cume do Tarija foi um esforço muito grande. Novamente no topo, agora o caminho era só descida. Em 2h percorremos o trajeto que na ida havia levado 4h30 e às 11h00 da manhã já estávamos de volta ao refúgio. Me sentia completamente esgotado e meus músculos pareciam sofrer pequenos choques quando eu tentava esticar os braços ou as pernas. As solas dos pés estavam muito doloridas por causa da bota rígida e foi inesquecível o alívio que senti ao voltar a caminhar sem elas.

Rodolfo na descida do Tarija

Fim do glaciar – pausa para descansar e tirar os crampons
Um ano antes havia escalado o Huayna Potosí, cujo cume passa dos 6 mil metros e não me lembrava de ter sofrido tanto assim. E afinal, com o Pequeño Alpamayo sendo 700 metros mais baixo, fazia todo sentido que fosse um pouco mais fácil e menos desgastante. Mas não foi. E se fizeram valer três regras do montanhismo que nunca falham: é sempre mais longe do que parece, é sempre mais alto do que parece e é sempre mais difícil do que parece. Lembrei-me do Pedro dizendo que um dos pré-requisitos para quem quer subir montanhas é ter uma memória curta. Noites mal dormidas, madrugadas geladas, falta de apetite, calor de derreter quando se está caminhando, a mão que congela quando é preciso parar e retirar as luvas por poucos instantes, a bota que tritura cada ossinho dos pés, o esforço físico extenuante e principalmente a danada da altitude e sua miserável concentração de oxigênio. Você ainda se lembra do gigante Illimani do começo da história? Ficou pra quando todo o sofrimento já não estivesse mais na memória! Naquele momento, a hora era de voltar pra casa.
“A vida é reduzida ao básico: se você está aquecido, confortável, saudável, sem sede ou sem fome, então você não está em uma montanha. Escalar em altitude é como bater sua cabeça contra uma parede de tijolos – é ótimo quando você pára “. – Chris Darwin