“Os dias que estes homens passam nas montanhas são os dias em que realmente vivem. Quando a mente se limpa das teias de aranha e o sangue corre com força pelas veias. Quando os cinco sentidos recobram a vitalidade e o homem completo se torna mais sensível, e então já pode ouvir as vozes da natureza, e ver as belezas que só estão ao alcance dos mais ousados.” – Reinhold Messner.
O autor dessa frase é considerado por muitos o maior alpinista de todos os tempos, tendo sido o primeiro escalador a atingir o cume de todas as 14 montanhas acima de 8 mil metros sem oxigênio complementar, alguma delas em solitário. Muito, mas muito longe disso, meu objetivo era bem mais humilde: tentar chegar ao cume do Huayna Potosí, montanha de 6088m de altitude, à cerca de 2h de La Paz, Bolívia. Mesmo modesto diante de tantas outras montanhas mais técnicas e muito mais difíceis, os efeitos da altitude em um 6 mil não poderiam jamais serem deixados de lado. Depois de muita pesquisa sobre o assunto, quando se fala em escalada de alta montanha, ficou claro que o segredo para sair bem sucedido se apoiaria no tripé – hidratação, descanso e aclimatação.

Altiplano boliviano com o Huayna Potosí ao fundo
O altiplano boliviano, onde fica a base da montanha e também o principal aeroporto para se chegar a La Paz, está situado à aproximadamente 4 mil metros. Quando você desce do avião em El Alto, uma das cidades com maior altitude do mundo, o efeito da baixa pressão atmosférica no seu corpo é instantâneo: dores de cabeça, cansaço, sonolência, taquicardia e respiração acelerada. Aliada à tudo isso, a pouca umidade relativa do ar ajuda a tornar cada inspiração um pequeno sacrifício. Em um ambiente como estes com ar rarefeito, ao detectar a baixa presença de oxigênio na atmosfera, o corpo começa a produzir mais glóbulos vermelhos. O aumento na presença destes, junto com a desidratação devida ao ar extremamente seco, faz com que o sangue fique mais espesso, o que pode trazer problemas à tecidos pulmonares e cerebrais.
A oxi-hemoglobina presente nas hemácias é capaz de carregar 98-99% de todo oxigênio presente no sangue e pode ser visualizada através da saturação de oxigênio, medida pelo oxímetro de pulso. Em outras palavras, esse aparelho verifica indiretamente a quantidade de oxigênio no sangue e permite ter uma noção do quanto seu corpo está sofrendo com essas condições adversas, servindo também para monitorar a evolução no processo de aclimatação. Leituras normais para indivíduos saudáveis ficam entre 97% e 100% quando medidas ao nível do mar. No dia seguinte após chegar em La Paz, eu apresentava uma taxa de apenas 89%. Se não fosse devido à altitude, seria um caso passível de internação, UTI e intubação traqueal!

Oxímetro utilizado para medir a saturação de O2 no sangue
A estratégia seria descansar bastante, caminhar lentamente pelas ruas de La Paz e tomar pelo menos 4 litros de líquidos diariamente, principalmente nos dois primeiros dias após a chegada. Felizmente existem diversos “baños publicos” pelas ruas da cidade que cobram apenas 1 boliviano para serem utilizados. Bebendo tanto líquido, não conseguia ficar mais do que 30 minutos sem fazer xixi. Acho que conheci todos os baños da capital pacenã!

Las calles de La Paz
Além disso, era preciso um plano para tornar a aclimatação mais efetiva. Para isso, um processo já consagrado consiste em subir alto e dormir baixo, ou seja, atingir altitudes mais altas durante o dia e descer para dormir em um local com altitude menor. Assim, como preparação para o Huayna Potosí, me programei para subir duas outras montanhas, o Chacaltaya, com 5421m e o Nevado Charquini, com 5390m. Nos dois casos, retornaria à La Paz no final do dia para dormir nos seus “confortáveis” e bem oxigenados 3600m. Também resolvi que seria melhor incluir pelo menos um dia de descanso entre uma ascensão e outra.

Turistas à caminho do cume do Chacaltaya
O Chacaltaya é uma antiga estação de esqui, a mais alta do mundo durante seu funcionamento, mas que hoje está desativada devido à baixa quantidade de neve no local, situação considerada por muitos como uma evidência do aquecimento do planeta. A montanha fica bem próxima ao Huayna Potosí e o acesso é feito por uma estrada estreita e bastante íngreme, mas que permite que se chegue até bem próximo ao cume, sendo preciso continuar caminhando por cerca de apenas mais 200m para se atingir o topo. Sem dúvidas é um dos pontos mais altos que se consegue atingir sem praticamente qualquer esforço e, por isso mesmo, uma atração turística muito conhecida em La Paz. Desde que você já tenha aclimatado em La Paz por uns dois dias, deverá sentir apenas um pouco de cansaço e talvez uma leve dor de cabeça devido à altitude, o famoso soroche.

Eliseu, guia boliviano, à caminho do Charquini
O Nevado Charquini, mais um 5 mil, também fica próximo ao Huayna Potosí e o acesso se dá praticamente pela mesma estrada, fazendo um pequeno desvio à esquerda para se contornar o Chacaltaya e chegar até os refúgios construídos na base do Huayna. Dali, percorre-se uma trilha que segue ao lado de uma canaleta construída para trazer a água resultante do degelo do glaciar até uma pequena represa próxima. Neste dia, enfrentamos um grande congestionamento no trânsito sempre caótico entre La Paz e El Alto, e acabamos chegando na base da montanha um pouco tarde. Devido ao horário adiantado, decidimos não tentar chegar até o cume, pois sobraria muito pouco tempo para retornar até o refúgio ainda com a luz do dia. Caminhamos por cerca de 2 horas até a base do Charquini e levamos mais 1h30 para subir até metade do glaciar, onde foi possível treinar o uso de crampons e do piolet, ferramentas indispensáveis para a escalada do Huayna Potosí dali há alguns dias.

No glaciar do Charquini, praticando o uso dos equipos de gelo
Não era minha primeira vez utilizando crampons para caminhar no gelo (uma peça formada por um conjunto de pontas destinados a serem presos à sola da bota do alpinista ou do escalador para permitir a sua progressão). Já havia feito isso em um trekking no glaciar Perito Moreno, na Patagônia Argentina. Não tem muito segredo depois que você pega o jeito, mas é um detalhe a mais a ser aprendido no caso de escaladas em montanhas nevadas. É preciso caminhar com as pernas ligeiramente afastadas para evitar que as pontas dos crampons enrosquem nas botas ou na própria calça e tomar cuidado para não “virar o pé” e torcer o tornozelo no caso de superfícies muito íngremes.

“Acampamento” alto do Huayna Potosí
Depois de cumprir o processo de aclimatação como planejado e de praticamente não sentir mais dores de cabeça e nem cansaço excessivo devido à altitude, estava chegando o momento de encarar a escalada. Na véspera, saímos de La Paz por volta das 9h30 da manhã, fizemos uma parada rápida para comprar o almoço em El Alto e por volta das 12h chegamos ao acampamento base do Huayna Potosí. Comemos rapidamente e logo em seguida já começamos a nos preparar para iniciar a subida até o acampamento alto. Foram 2h30 de caminhada morro acima, saindo de 4700m e chegando até os 5130m onde passaríamos a noite. Andrés, que seria o guia da minha cordada logo mais, preparou o jantar para o grupo e às 18h eu já estava deitado em uma tentativa ingrata de tentar dormir o máximo que fosse possível.

Hora do jantar no acampamento alto
A altitude e a ansiedade tornavam muito difícil qualquer chance de um cochilo. O acampamento alto é como se fosse uma cabana compartilhada entre diversas agências e guias particulares. Às 23h30, as luzes foram acesas e todos começaram a se preparar para a subida. Uma calça térmica e outra impermeável por cima, uma segunda pele, um fleece, um blusa impermeável com capuz, polainas, botas rígidas, luvas para neve, lenço para proteger o pescoço e nariz, cadeirinha de escalada, capacete, lanterna de cabeça e uma mochila com água e chocolate. Faltava alguma coisa? Tomei uns goles de chá de coca para tentar me aquecer melhor e à 1h30 da manhã deixamos o conforto do refúgio para encarar -8ºC de temperatura e um vento malandro que insistia em tornar tudo ainda mais gelado e sofrido.

Um breve momento de descanso durante a subida
O primeiro trecho é de uma escalaminhada sobre rochas que estavam cobertas com uma fina camada de gelo, o que tornava indispensável o uso de cordas fixas para evitar o risco de quedas. Após uns 30 minutos chegamos à um ponto a partir do qual o uso de crampons seria necessário. Devidamente calçados e encordados, começamos a lenta e constante subida até o cume. A estratégia era subir devagar mas sem fazer paradas muito longas para descanso. O frio é muito intenso e você começa a congelar quando diminui a circulação de sangue pelo organismo. Andrés seguia na frente guiando e eu buscava acompanhar na medida do possível. Em alguns momentos, não tinha jeito: “- Andrés, un momento, por favor. Estoy muy cansado”. Ele se virava pra checar meu estado e pacientemente aguardava que eu recuperasse um pouco de forças. Depois de um trecho muito inclinado de uns 50 metros, em que é preciso utilizar o piolet para conseguir subir, eu achei que não conseguiria mais continuar. Pedi para pararmos por um instante, mas estávamos em um local muito exposto ao vento forte e tive que continuar em frente quase me arrastando. Em nenhum momento pensei em desistir, só tinha receio de simplesmente apagar com o cansaço e o esforço físico bem acima do que estava acostumado a enfrentar por aqui nas montanhas da nossa “Cordillera de la Mantiqueira”. Resolvi tentar me concentrar apenas na minha própria respiração e continuar subindo, um passo de cada vez. Puxava o ar congelante o mais fundo que podia. As botas rígidas próprias para gelo e neve já estavam cobrando o preço da regra mais simples do trekking: nunca utilize uma bota pela primeira vez em uma longa caminhada sem antes se acostumar com elas. Duas bolhas se formavam pouco acima dos meus calcanhares.

Escaladores no cume do Huayna Potosí
Passo a passo, continuamos em frente e depois de atravessarmos um trecho de rochas bastante exposto, Andrés me cumprimentou e avisou que havíamos chegado ao cume. Talvez se ele não dissesse nada, eu teria continuado subindo até não sei onde. Me sentia meio desorientado, efeito da altitude e do ar rarefeito aliados ao esforço físico extenuante. Me encostei em uma crista que existe próxima ao cume e pude finalmente descansar um pouco.

Eu e Andrés, o guia da cordada, próximos ao cume do Huayna Potosí
Éramos a segunda dupla daquele dia a chegar ao topo. Lá de cima podíamos ver dois grupos que retornavam antes do trecho de rocha. Haviam desistido. Logo outros escaladores chegaram e tiravam fotos para registrar aquele momento de conquista e superação individual. Eu dizia baixinho pra mim mesmo “Nossa, tenho que tirar umas fotos também”, mas não me mexia pra retirar a mochila das costas e nem pra pegar a câmera ali guardada. Só queria ficar ali quietinho descansando. Andrés me avisou que logo deveríamos começar a descida, e finalmente me animei e registrei algumas imagens dos outros escaladores e do sol que mal acabava de nascer.

Travessia do trecho de rochas na hora da descida
Descansamos mais um pouco, e iniciamos o caminho de volta. Foram 5h de subida e cerca de 3h para retornar ao acampamento alto. Ao contrário da escalada até o cume, a descida é marcada por muito calor. O sol refletido na neve e no gelo torna a superfície da montanha um verdadeiro microondas a céu aberto. Ao retirar os crampons no final da descida, me peguei pensando se tudo aquilo havia valido à pena. Afinal, era muito esforço para poucos minutos no topo da montanha. No dia seguinte, já em La Paz, ao rever as imagens e os horários das fotos que tinham sido tiradas no cume, percebi que entre a primeira e a última foto haviam se passado 47 minutos. Permanecemos lá no alto por mais de uma hora e eu simplesmente não me lembrava. Mas sim, com absoluta certeza tudo isso valeu muito a pena e tomara que tenha sido somente o primeiro 6 mil que me permitiu chegar até seu topo!
“O que leva alguém a escalar montanhas é algo que a maioria dos que não fazem parte do mundo dos montanhistas tem muita dificuldade para entender, se é que entende.” – Jon Krakauer no livro Sobre Homens e Montanhas.
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